Carlos Roberto Maciel Levy

Crítico e Historiador de arte

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Sexo, Hipocrisia e Tribunais

Três julgamentos morais separados por 24 séculos sugerem que nossa civilização pode estar regredindo bastante. No século IV a.C. a bela e audaciosa cortesã grega Frinéia foi julgada em Atenas por impiedade. Seu advogado, orador brilhante, não precisou falar muito: despiu-a diante dos juízes e Frinéia foi imediatamente absolvida. Os antigos gregos apreciavam beleza e arte mais do que tudo, não eram muito dados a preconceitos sexuais ou religiosos e talvez já estivessem bem acostumados a associar o corpo de Frinéia, através das estátuas do grande escultor Praxíteles, à imagem da deusa Afrodite.

Em pleno limiar do século XXI, o mais famoso clube de imprensa do mundo, em Washington, EUA, resolveu julgar Frinéia novamente. Dessa vez, representada pela magnífica tela que o artista brasileiro Antônio Parreiras pintou em 1909. E que pintura! Se os nus de Parreiras sempre se destacaram por forte sensualidade, por uma espécie de intensa densidade erótica muito rara mesmo na pintura francesa do gênero, em Frinéia tudo isso atingiu o clímax. Lá está na grande tela — nua, linda e provocante — não apenas uma etérea deusa grega do amor e da beleza, mas uma verdadeira mulher tremendamente desejável. E exatamente por isso, o tribunal de jornalistas condenou-a sem hesitação: a pintura deve ser expulsa da sede do National Press Club, ao qual pertence.

Um terceiro julgamento, bem recente e também em Washington, não envolve Frinéia mas pode explicar porque sua imagem foi tão barbaramente condenada pelo NPC. Bill Clinton, presidente dos EUA, encurralado por "evidências materiais" confessou ter mantido "relações impróprias" com Monica Lewinsky. No longo e grotesco espetáculo de puritanismo, mentiras e oportunismo político que se arrasta há meses, o infeliz Clinton jamais poderia ser absolvido despindo suas amantes diante dos juízes. Nenhuma delas satisfaz aos exigentes padrões estéticos da antigüidade grega, e mesmo que Lewinsky fosse uma espécie de Frinéia contemporânea ainda assim Clinton e ela seriam inapelavelmente condenados, pelo moralismo preconceituoso e medíocre, como aconteceu com a pintura de Antônio Parreiras.

Os norte-americanos sempre gostaram de julgamentos hipócritas e no passado costumavam perseguir bruxas e comunistas. Mas parece que ultimamente, nos tempos neo-hipócritas do mercantilismo triunfante, preferem perseguir imagens eróticas e atos sexuais. E nesse caso, não cabe a menor dúvida: em matéria de sexo e tribunais, é bem melhor ter sido prostituta na Grécia antiga do que ser presidente nos EUA de hoje.

 

Originalmente publicado no JORNAL DA CRÍTICA, da Associação Brasileira de Críticos de Arte,
número 6, junho de 1999, p.12



NOTA
A absurda situação comentada neste texto teve o melhor final possível: Frinéia foi comprada de seus toscos proprietários norte-americanos e retornou em definitivo ao Brasil no ano de 2006.

TEXTO:
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IMAGEM:
ANTÔNIO PARREIRAS (1860-1937), Frinéia, 1909, coleção particular, Rio de Janeiro RJ

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